18/01/2011

"..senti que estava pisando em algo..era o corpinho da minha filha de 8 anos.."

* "Era um dia como qualquer outro, a chuva caia forte e insistentemente. 
Aquela chuvinha que nos convida a um cochilinho gostoso e merecido.
E pensei:
Já lavei a roupa, já arrumei a casa, a janta das crianças ta na geladeira, é a mesma comida do almoço, é só esquentar..acho que posso me dar ao luxo de descansar uns 40 minutinhos.
E descansei , acordei com um barulho forte, ouvia gritos por todos os lados, minha casa estava inteira, ou o que restou dela, em baixo da agua , minha filha sumiu em meio a tanta lama e agua, a casa já não estava mais no chão, a porta fora parar em cima de uma árvore, o telhado se desfizera completamente, as madeiras prendiam minha perna que sangrava muito, eu não via muita coisa e ainda sentia uma forte correnteza tentando levar meu corpo.
Com muito esforço consegui desprender minha perna , e me agarrei ao pedaço de alguma coisa que vi na minha frente, a agora conseguia enxergar tudo o que acontecia a minha volta, e milhares de pessoas estavam como eu , agarradas em pedaços de madeira, assustadas ,ainda sem entender muita coisa, outras choravam, outras estavam mortas. 
A minha frente vi passar um corpo de um senhor, as roupas estavam todas rasgadas , o braço estava visivelmente quebrado, o rosto, o rosto estava virado pra baixo, era um corpo boiando em meio aquele resto de lama e agua que nos cercava. 
Aos poucos a agua baixava, consegui me levantar com muita dificuldade, meu pé afundava naquela lama fofa que me rodeava, senti que estava pisando em algo, era minha filha.
O corpinho da minha filha de 8 anos.
Antes de eu dormir ela me pedira pra ir brincar na casa do vizinho, me pedia com tanta vontade, não tinha como dizer não..ela estava de férias, ela tinha que se divertir.
Espero que tenha dado tempo dela se divertir...
Estava em choque olhando minha filha, perdi novamente as forças nas pernas e cai ajoelhada abraçada ao corpo da minha pobre criança. 
Não conseguia pensar, raciocinar, apenas chorava como se minhas lágrimas e meus gemidos de dor fossem fazer meu anjinho voltar a vida . 
Minutos depois ouvi um gemido não muito longe, não queria ouvir, não queria dar atenção, minha filha morta estava la em meus braços e minha vida tinha acabado de se desfazer, de perder o sentido.
Mas algo me fez voltar e recobrar os sentidos, uma voz chorando gritava "Me ajuda, alguém me ajuda , mamãe.." - Era o filho de minha vizinha, ele conseguiu se salvar, estava muito machucado, e preso a uma mesa já toda quebrada que não o deixava levantar. 
Sem pensar muito, e ainda chorando desesperadamente, soltei o corpo da minha menina, e corri em socorro a essa outra criança, mesmo machucada, não sei como nem de onde retirei forças para levantar a mesa e retirar o pequeno de lá. 
Ele chorava muito e chamava por sua mãe, que até então não sabia aonde estava.
Pedi pra ele se acalmar, olhei em volta afim de procurar por socorro, mas a minha volta só tinha destruição, lama, corpos, madeiras, carros jogados , e muito muito desespero.
Depois de analisar a situação ajudei ele a se levantar apoiando o em meu braço, e o levei a uma calçada, ou o que restara de uma, pedi pra que ele ficasse la que eu procuraria ajuda.
Nesse percurso via a minha volta mães chorando por seus filhos, e filhos chorando por suas mãe, vi idosos  jogados inconscientes, em meio a cachorros mortos. 
Todos muito sujos, todos muito machucados.
Foi então que avistei os corpos dos pais do menino que havia salvado. Estavam mortos .
Antes que ele visse , peguei alguma coisa parecida com um plástico e coloquei sobre suas cabeças. 
Não queria que a pobre criança visse os pais assim.
Abracei-o contra meu seio e chorei ainda mais, disse pra que ele não se preocupasse, que a ajuda estava vindo,que tudo ia ficar bem.
Mas na verdade nem eu sabia o que seria de nós.
Mais tarde quando o menino diminuiu o choro eu perguntei como ele conseguiu se salvar. 
Ele me disse ainda em meio a soluços "Minha mãe viu o morro desmanchando e não dava tempo de fazer nada, ela nos empurrou pra debaixo da mesa e nos cobriu com uns cobertores que estavam jogados, disse pra ficarmos juntos, mas a Daiane começou a gritar que tinha que te acordar , que você tava dormindo , e correu pra fora de casa, mas aí a agua atingiu nossa casa, eu me salvei por causa do cobertor e da mesa. Mas o Daiane não conseguiu dona Maria. Nem meus pais né? Eles morreram não é? Eu vi quando a agua levou eles, eu vi eles olhando pra mim chorando muito mas eu não consegui segurar a mão deles Dona Maria ,eu não consegui ...eu tava com tanto medo..."
As lágrimas voltaram a cair do meu rosto, minha filha, minha pobre filhinha morreu por tentar me alertar do perigo, morreu pra me salvar, meu Deus, deveria ser o contrario. E eu agora estava seu minha pequena, e essa criança sem os pais. 
Não sei o que será de nossas vidas, ao longe já começo a ouvir barulho de helicópteros e sirenes, acho que a ajuda chegou .
Só sei que minha vida não será mais a mesma, minha vida já não tem mais vida, não quero minha casa, não quero meu terreninho, não quero doações de águas e roupas. 
Quero minha filha , minha pequena Daiane em meus braços , quero voltar a dormir, e acordar com ela me chamando por que esta com fome.
Tudo o que quero é a paz que me foi roubada."





*Depoimento fictício escrito por mim baseado na historia de uma mãe que perdeu seu filho único na tragédia desses ultimos dias. do Rio de Janeiro


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