14/12/2016

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Ela tava meio perdida em suas ideias..isso não era novidade nenhuma, mas antes, muitos anos atrás quando se sentia assim ela só botava uma música qualquer, apagava a luz do quarto e dançava meio sem regra e sem compasso , de um jeito bagunçado que parecia correto pra ela.
O mundo era bom quando dançar parecia aliviar os problemas .
No mundo adulto ela não tem tempo, animo, espaço ou vontade de dançar.
E quando se anima ela vê que o tempo passou. Que tem outra coisa pra fazer. Ela aperta a vontade de dançar de volta pra dentro dela como quem tenta fechar uma mala muito cheia.
Tinha até prometido não se "esquecer de si mesma" , mas ela ultimamente não tem se reconhecido , então isso meio que perdeu o sentido.
Ela entende que precisou mudar, amadurecer, mas vez ou outra ela sente culpa quando ve uma foto de uns anos atrás aquele sorrisão despreocupado ao estilo "keep calm, and just dance!" .
A mania de escrever sobre si na terceira pessoa ela não perdeu. Ponto.
Agora ela escreve em bloco de nota enquanto espera a internet voltar pra retornar o que estava fazendo online.
Já nem sabe mais pra quem, ou porque escreve. Já alegou outrora que era registro pros filhos a conhecerem melhor...
É segredo, mas ela não se ve ficando velhinha, sempre teve a intuição que desencarnaria jovem provavelmente deixando marido e filhos. Como disse, é segredo. Nunca comentou isso com ninguém, achou meio inoportuno e bem pessismista e provavelmente levaria bronca por pensar assim. Ela não escolheu, mas sente isso desde muito cedo.
De qualquer forma ninguém lembra desse espaço então escreve sem preocupação.
Ela está bem, e está feliz, mas sente falta de alguma coisa, e ela não sabe dizer o que. Não é nada no ramo afetivo, ou de amizades, é algo dela, dentro dela mesmo. Acho que é o coração sambando.
Bem...definitivamente é o coração sambando.
O coração dela sambava quando ela estava extremamente entusiasmada com algo que estava prestes a acontecer, ou quando de madrugada ela tinha vontade  quase incontrolável de desenhar, escrever ou dançar. O sambar do coração dela mantinha ela com uma expectetiva igual de uma criança na véspera do proprio aniversário, a diferença é que ela ficava assim sem nem sempre entender o motivo. Mas adorava ficar assim....

21/09/2016

Sobre aprendizado, faltas, e meus alunos...



Faz quase um ano que não escrevo aqui...não por falta de vontade, não por falta de tempo...não sei dizer o que aconteceu comigo nesse ano que se passou.
Meu ano foi bom, foi cheio de expectativas, cheio de coisas boas que aconteceram, e coisas que esperava acontecer e não foi bem assim...
Me olho no espelho e não me reconheço, coisa minha comigo mesma....mas que estou trabalhando pra melhorar...

Comecei a trabalhar em um lugar que eu tinha vontade de fazer tudo por ele, conheci crianças, meus alunos, que me desafiaram, como professora e como pessoa, pequenos e grandes alunos que fui aprendendo a amar um por um em meio a broncas, abraços e orgulho.
E fui demitida.
Não por algo que fiz, ou deixei de fazer. Corte de gastos.
Mas foi a primeira vez que fui mandada embora, tive um corte de relações repentino com as crianças que aprendi a amar em pouquíssimo tempo.
Me foi negado o direito de me despedir delas, insisti, pedi, bati o pé, e tive um dia pra dizer adeus e não dar muita explicação.
Entre elas tinham algumas que acabaram comigo ter que dizer tchau.
Tinha o JG, ele tinha um pequeno grau de autismo, tinha dez anos e dizia-se apaixonado por mim, era doce, sorridente e toda aula me pedia pra brincar de caça ao tesouro , eu tentava explicar que pra isso todos deveriam querer brincar, e tentava convencer a sala mas ninguém topava. Conversava com ele e via outro jogo que ele gostaria de brincar . Na maior parte do tempo ele ficava em seu mundinho, mas todo dia de manha vinha me falar "Bom dia minha dama" apertando minha mão. Na despedida os alunos me escreveram cartas, na dele ele colocou o endereço de sua casa "Vai me visitar por favor esse é meu endereço, minha casa tem porta branca.." . Nunca vou esquecer dele.
Havia também o I. diagnosticado com psicopatia infantil, quando cheguei fui alertada sobre ele, tinha nove anos, era manipulador, tinha um leve atraso, provocava os colegas e quando os mesmo revidavam ele ficava parado chamando nossa atenção pra ficar como vítima da situação. Por isso as demais educadoras não tinham paciência com ele, eu era nova lá e talvez por isso tinha mais. Ele adorava ficar abraçado, ou de mãos dadas com as educadoras. As demais crianças não entendiam o problema dele e sempre reclamavam de seu comportamento. Um dia pensei em contar-lhes, mas achei melhor não, elas o tratavam apesar de tudo bem, como se ele não tivesse nenhum problema. Isso acho eu , era bom.
R. ela foi o maior desafio. Uma adolescente, treze anos, extremamente fria, agressiva, mas ao mesmo tempo os olhos dela a traíam e passavam uma doçura que ela tanto queria esconder. Meu primeiro encontro com ela foi ela cochichando algo pra uma colega enquanto olhava pra mim e ria. Eu não me deixei abalar, olhei e sorri de volta. Depois em minha primeira aula ela ja demonstrou-se desconfiada, expliquei quem eu era, e deixei aberto pra me fazerem as perguntas que queriam, enquanto todos me perguntavam ela ficava em silencio como se estivesse me lendo ou tentando me ler. Eu sabia que com ela teria que ter um certo cuidado. Uma das educadoras me disse que um dia que ela a desrespeitou a mandou pra fora da sala, ela saiu e com uma chave riscou a moto da educadora. Então tentava ao máximo não bater de frente com ela e ao mesmo tempo tentava ser firme. Mesmo assim senti que ela se afastava cada vez mais. Ela andava com os meninos da sala, eles a admiravam por seu comportamento rebelde , e ela percebi que tinha necessidade dessa aprovação deles. Um dia cheguei em sala e ela estava com um brinquedo de blocos em mão jogando as peças nos colegas, pedi que guardasse. Ela não o fez, me ignorou e continuou a jogar os blocos. Insisti, e nada. Alertei que se ela não guardasse teria de ter consequências, ela riu. Insisti, ela me desafiou achando que eu blefava, pedi que se retirasse, ela se irritou pegou o jogo todo e tacou na parede do outro lado da sala. Vendo que ela não ia se retirar e estava exaltada saí da sala e fui pedir pra psicóloga chama-la pra conversar. Ela saiu, e retornou em silencio quando a aula ja acabava. Me senti mal, queria entende-la , queria ter uma abertura, sabia que sua vida não era fácil. Na mesma semana ela brigou com outro aluno, e sua mãe foi chamada, a mãe igualmente fria brigou com ela e puxou seu cabelo diante da coordenadora e educadores. Na semana seguinte ela estava diferente, mais quieta, não digo mais calma pois sentia que ela estava com a raiva contida, mas ainda tinha raiva. Fui dar minha aula e decidi apresentar uns slides com fotos de algumas apresentações minha, isso chamou a atenção dela, e pela primeira vez vi ela se afastar dos meninos pra prestar atenção ao que eu falava. Ela me fez perguntas sobre as peças, sobre meu figurino, sobre como foi pra mim interpretar um homem , eu respondi tentando conter minha felicidade ao vê-la participando. Adotei o psicologia do abraço, no caso do sorriso pois ela não se permitia abraçar nenhuma educadora, todo dia de manha que eu a via eu sorria e dizia "Bom dia R. , tudo bem com você?", na primeira vez ela ficou tão desconfiada que não me respondeu, depois me falou bom dia, depois me disse que que estava tudo bem, e finalmente já me perguntava como eu estava também.  Então também mudei meu modo de coloca-la em aula, sempre perguntava sua opinião nas atividades, a colocava como lider nos jogos , perguntei se tocava algum instrumento, ela disse cajon, e consegui um emprestado pra ela tocar na apresentação de dia das mães. Ela brilhou na apresentação. Eu a via sorrindo e o sorriso agora condizia com o olhar doce. Ela ainda era rebelde, ainda mexia nas fantasias da sala quando não podia, mas quando eu pedia pra guardar ela guardava e ainda dava bronca nos meninos pra eles guardarem também. Uma semana antes de eu ser mandada embora a psicologa que sempre a atendia foi transferida, e pela primeira vez via a R. chorar. Enquanto os demais alunos abraçavam a psicologa pra se despedir ela chorava olhando de longe. Eu vi, fui até lá. Pedi que falasse comigo e ela me respondeu "Você não entende pro, a Lidi era a única que me ouvia, que sabia o que acontecia comigo,ela me ajudava a não ter raiva. Agora ela ta indo embora, quem vai me ouvir? Quem vai conversar comigo?" , aquilo mexeu comigo, eu a abracei, não queria saber se ela gostava ou não de ser abraçada, foi de impulso , mais forte que eu, eu queria abraça-la o mais forte possível e o fiz. Pra minha surpresa ela não tentou se soltar, encostou a cabeça em meu ombro e chorou , e eu chorei junto. E falei "R. sei que a gente se estranhou no começo, sei que posso ser só mais uma professora, mais eu me preocupo com você, e gosto muito mesmo de você e quero que saiba que você pode sim contar comigo, conversar quando precisar ou estiver nervosa, pode se abrir, pedir conselho, eu to aqui pro que você precisar, você não esta sozinha."  Ela falou sobre sair do projeto, e eu falei que se ela saísse o projeto perderia uma aluna muito importante e especial. Convenci ela a não abandonar o projeto. Uma semana depois fui demitida. Quase não tive coragem de olhar ela nos olhos, na semana anterior ela me perguntou se eu também iria embora, e eu disse que se dependesse de mim não iria, mas uma semana depois descubro que vou embora. No dia que fui me despedir ela estava na aula de judô. Quando os alunos me viram vieram correndo em minha direção já chorando me perguntando porque eu estava indo embora, ela novamente me olhando de longe, veio se aproximando depois de todos, me deu abraço apertado, pediu me whats e disse que precisava voltar pra aula de judô. Ela chorou, mas se despediu rapidamente de mim. Na hora me doeu, queria mais demonstração de carinho, e não tive. Mas lembrei de como ela reagiu a despedida da psicologa. Compreendi. No mesmo dia ela me mandou mensagem no what, "Pro estou com saudades, porque você saiu ? Você era a pro mais legal, agora não tenho mais motivos pra continuar no projeto, vou sair" , conversei com ela, expliquei, ela ficou com raiva da coordenadora mas eu expliquei que ela não teve escolhas pois a instituição estava passando por dificuldades financeiras e teve que demitir que havia entrado por último pra não ter tantos encargos pra pagar . Ela entendeu, mas disse que o projeto não seria a mesma coisa sem mim. Ela foi minha melhor conquista , minha maior prova, minha maior lição que aprendi nos poucos meses que trabalhei lá. Ela é uma jovem como várias que existem por aí que muitos julgam descontroladas e delinquentes mas que tem uma família desestruturada, passa fome, dificuldades, violências de todos os tipos que a fazer ser fria, mas que esperam alguém olhar nela mais do que isso, olhar a doçura em seus olhos, e descobrir que ela tem muito mais a oferecer, tem qualidades, tem talentos que precisam ser valorizados pra quem sabe mudar seu futuro. Descobri que ela canta. E canta bem, só descobri uma semana depois de ter ido embora porque ela me add no facebook e vi um vídeo que uma irmã mais velha dela postou uns meses atrás. Ela tem uma linda voz . Ela tem arte dentro de si e espero de coração que ela não perca isso. A R, e todos eles , cada um deles me fez entender uma nova maneira de amar e lecionar.

Recebi mais de sessenta cartas que eles me escreveram e chorei lendo cada uma. Faz quatro meses que não trabalho mais lá, e ainda sonho com eles toda semana. Toda semana sonho que voltei a trabalhar lá ou que reencontrei eles em alguma situação bem melhor. Foi um baque pra mim, fiquei mal por muito tempo mas não contei pra quase ninguém, nem aqui pro meu cantinho online, eu realmente sofri. Descobri um novo choro, um novo sofrimento, uma nova saudade.
Eles ainda me mandam whats, e perguntam quando vou visitá-los, mas não sei se tenho essa coragem pois sei que na hora de falar tchau vai ser igualmente doloroso. Mas vou  , com certeza vou.


Esse foi um dos episódios desse ano, o que mais me marcou, ja imagino as pessoas me falando que tenho que parar de sofrer tanto e me apegar aos alunos por isso, que devo romantizar menos as coisas, mas eu sou assim, e prefiro sofrer por ter me apegado do que sair de um lugar sem ser lembrada e sem ter feito nenhuma diferença na vida de pelo menos um aluno.


Isso me mudou de alguma maneira, muitas coisas me mudaram, em tempo, a saudade do palco ainda está comigo, mas evito falar disso, pensar nisso.
Sei que cabe a mim fazer algo, mudar isso, correr atrás, escrever uma peça e apresentar, mas com quem, sozinha? E patrocínio, apoio? E as contas? Não posso me dar ao luxo de me dedicar de corpo e alma a algo que não vai me trazer retorno financeiro porque é o que precisamos agora.
Respiro. Vou me recompor. Não sou a primeira nem a última a dar um tempo no seu sonho mesmo porque tenho outros sonhos agora que precisam de minha atenção. Talvez deva mesmo parar de romantizar as coisas...
Um dia quem sabe , nunca é tarde pra um palco.